terça-feira, 25 de julho de 2017

A Memória Biocultural - Resenha e pensamentos meus ao ler o livro



O ser humano, quando lidando com a natureza, precisa de meios intelectuais para construir uma relação com ela. Há toda uma observação e leitura do ambiente, que culmina com a apropriação desses elementos no idioma e na vida cotidiana das pessoas e das comunidades. Os desenhos de implantação agrícolas praticados pelos povos antigos, por exemplo, dependiam da compreensão de toda a paisagem e dos ecossistemas envolvidos. Para tanto, era necessário uma visão holística, isto é, uma visão que contemplasse todas as facetas da realidade que se punha à frente do observador. Tudo ganha nome: plantas, animais, solos, ventos, águas, relevos  e toda a dinâmica envolvida.
Uma vez que a natureza foi lida e uma comunidade se apropriou de tudo o que ele pode oferecer à vida dessas pessoas, dizemos que essa natureza foi culturizada. Surgem daí as comidas típicas, as formas construtivas e mesmo as comemorações ligadas a colheitas ou disposição dos astros. Cria-se a percepção de que, na natureza, tudo está interligado e isso se reflete na cultura.
Essa forma de ver o mundo, sem divisões entre áreas de estudo, é bastante díspare em relação à visão da ciência moderna, que se apresenta compartimentada. Porém, quando separam-se artificialmente os elementos envolvidos, as partes perdem o sentido dentro de toda a linguagem e cultura onde estavam originalmente inseridas.
O apogeu da visão racionalista que vivemos hoje, vem causando uma ampla uniformização de processos e uma consequente perda de diversidade de idiomas, costumes e mesmo da genética de espécies.­­­­­ Milhares de idiomas foram se perdendo após a época da colonização e a velocidade de extinções aumentou vertiginosamente após a globalização promovida pelos países da américa do norte, europa e leste asiático. Com o fim de um idioma, todo um universo de conhecimentos e formas de relação com ambientes morre junto. Perde-se diversidade inclusive de plantas cultivadas por esses povos. Estudos mostram que, nos locais onde há maior variedade de idiomas, há também maior variedade de plantas e até mesmo de aves. Da variedade linguística, surge uma diversidade de vida associada a esse modo de lidar com o mundo. Daí percebemos que a humanidade, quando trabalhando junto à natureza, se mostra uma espécie bem vinda ao ambiente e não uma praga. Essa é uma percepção que a linha conservacionista tende a ignorar e difunde-se a ideia de uma natureza à parte do homem. Sendo assim, os parques nacionais não permitem que ninguém os habite e reforça-se a idéia de separação entre humanidade e natureza.
Atualmente já se sabe que a idéia de natureza virgem e intocada é um mito, e que mesmo a mata mais densa nos confins da amazônia, por exemplo, são fruto de algum manejo humano e que suas configurações não se dão somente pela influência da fauna ou pelo mero acaso. Centenas de povos habitaram a amazônia de forma sustentável por milhares de anos antes da invasão européia, de modo que temos a falsa impressão de que nunca houve ninguém nesses locais. Além disso, muitos praticavam agriculturas tão integradas à natureza que levou os europeus a classificá-los como coletores.
Como, em muitos  casos, são culturas ágrafas, isto é, sem escrita e de tradição oral, essas culturas não deixaram histórias e técnicas sistematizadas para a posteridade. Isso não significa porém que tenham sido sociedades analfabetas ou incultas. A escrita nunca fez falta, já que eram culturas vivas. A carga de conhecimento e valores dos mais velhos era passada às novas gerações por meio da atitude e da fala. A memorização dos ensinamentos acontecia nas práticas da vida diária.
A memória era, portanto, a forma de manutenção e replicação dos conhecimentos e dos valores. No entanto, o conhecimento guardado na memória não funciona da mesma maneira que o guardado em livros, e isso muda bastante as coisas. Quando a cultura apoia-se em material escrito, há, no máximo, interpretações do texto. Quando não há escrita, a conformação da sociedade ocorre de forma mais orgânica e a memória é diversificada e não centralizada, estando dispersa em diversas escalas:

- Memória de uma etnia ou de uma cultura;
- Memória regional, delimitada pelo território histórico e pela natureza culturizada que o rodeia;
- Memória Comunitária, que se refere ao espaço apropriado por uma comunidade;
- Memória Doméstica, delimitada pela área de apropriação de um produtor e de sua família;
- Memória individual, restrita ao próprio indivíduo.

 Cada indivíduo do grupo detém uma parte da totalidade do saber, e esse saber é sempre “contaminado” pelos sistemas de crenças dos indivíduos. Mesmo os mais jovens transformam os saberes recebidos e são portadores de novos conhecimentos. Essa é a riqueza da tradição oral. A memória, nesse caso, não é algo que os membros da comunidade decorem, é algo que vivem e que está intimamente arraigado.
De forma sintética, podemos dizer que, para chegarem a essas formas de vida, foi preciso que: acumulassem conhecimentos, tivessem crenças e a partir disso adotassem determinadas práticas. Esse foi o trinômio que impulsionou os povos humanos durante a grande maioria de sua história. Os conhecimentos, aliados a crenças e que geram práticas estão rapidamente se perdendo após a era industrial, e é uma das maiores causas da insatisfação e da ansiedade da modernidade. Ao se tornar urbano e dominado pelo racionalismo científico, o ser humano está se distanciando de sua essência enquanto espécie. Toda a bagagem cultural impressa em seu corpo e em sua mente por milhares de gerações torna-se sem função e sentido ao se distanciar da natureza.
As populações rurais, influenciadas pelo monocrático entendimento de que a ciência é a autoridade máxima, transformou as paisagens em chão de fábrica e isenta de culturas associadas. Os agricultores do passado não foram ouvidos e foram convencidos de que suas técnicas eram arcaicas, primitivas e inúteis. Deveriam portanto se modernizar e passaram a usar os kits da agricultura pregada pela Revolução Verde: trator, fertilizantes químicos solúveis, monoculturas de variedades transgênicas e muitos venenos e herbicidas.
Com tudo isso, as populações perderam autonomia e suas culturas deixam de trabalhar com a vida e com os processos naturais, mesmo habitando o campo. O prazer de dialogar com o ambiente desaparece e passam a buscar a razão de existir no consumo de bens materiais produzidos industrialmente. Passam a produzir comodities - soja, milho etc - e deixam de produzir até mesmo a própria comida. A paisagem torna-se uniforme e monótona para todos os lados que se olhe. Todos os animais predadores de pragas perdem seus habitats e a função que exerciam passa a ser cumprida pelo veneno aspergido até com aviões. Sofre o ambiente, sofre o agricultor, sofre o consumidor.
Para a criação das variedade de plantas e animais “melhorados”, as corporações recolheram muito material genético e os guardaram em laboratórios. Foram aproveitando o que cada variedade tinha de melhor para se alcançar alto rendimento e um visual padrão de mercado. Com a massificação do uso de transgênicos, a tragédia anunciada ocorreu. Os produtores tradicionais perderam as variedades de plantas que cultivavam e o material genético agora foi privatizado pelas grandes corporações, sendo que, as plantas que não eram alvo de estudo laboratorial, foram perdidas. Para completar, as sementes geradas pelas plantas transgênicas são inférteis, fazendo com que o produtor tenha que estar permanentemente comprando sementes das corporações e os fertilizantes químicos são solúveis, fazendo com que sejam lixiviados e perdidos sempre.
Para tentar “congelar” as culturas e preservar genes, os pesquisadores que se sensibilizam com toda a perda associada ao “progresso” criam jardins botânicos, zoológicos, museus, dicionários de idiomas, registro de saberes etc. Todas essas saídas, no entanto, são falaciosas. Preservam-se elementos soltos e desvinculados de qualquer cultura viva. É uma forma de artificialização da natureza. Uma proteção “por decreto” e intensa na utilização de recursos não renováveis que teve seu ápice no falido experimento Biosfera-2: uma estufa no meio do deserto americano em que se tentou por alguns anos reproduzir um ambiente de floresta tropical.
Alguns produtores, por resistência e outros por marginalização, conseguiram escapar do rolo compressor que representa a Revolução Verde. No Brasil, movimentos como o MST tem representado a oposição a todo esse sistema. A agroecologia, buscando os conhecimentos dos povos antigos, vem se desenvolvendo mesmo que de forma tímida. No entanto, para que seja uma alternativa viável, é preciso que haja um êxodo urbano de grandes proporções.

A agroecologia prega uma agricultura baseada em processos e não em insumos, sendo intensa em mão de obra. Com o atual esvaziamento dos campos, não é possível produzir em escala suficiente para o abastecimento das cidades. Esse é o nosso desafio atual: fazer com que os seres urbanos se encantem por tudo o que o campo pode lhes oferecer. A ciência racionalista e os métodos holísticos se divorciaram de tal forma que a reconciliação dessas duas tradições intelectuais se faz urgente.

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